segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Valor Econômico: Brasil, entre o crescimento e a crise americana(22/10/2008 - 11:57)

A análise da evolução econômica brasileira nos últimos dez anos revela a existência de dois diferentes padrões de crescimento. Entre 1997 e 2003, o regime foi nitidamente instável, com taxas reduzidas e bastante voláteis de crescimento do PIB. A economia esteve imersa numa dinâmica do tipo stop and go, muito perniciosa por seus efeitos negativos sobre a acumulação de capital fixo produtivo, que é a base do desenvolvimento econômico. A política econômica esteve focada na estabilidade financeira e de preços, mas sob o pressuposto equivocado de que o equilíbrio macrodinâmico lhes seria a resultante necessária. Trata-se da hipótese liberal e conservadora de que a política monetária deve cuidar apenas dos preços, pois não afetaria o PIB potencial no longo prazo. Desta forma seria capaz de bem pavimentar uma trajetória futura de crescimento econômico sustentado, pois taxas elevadas de juros simplesmente não importam para as decisões de investimento, já que a moeda é suposta neutra. Todavia, tal hipótese carece tanto de fundamento teórico consensual quanto de evidências empíricas satisfatórias. Disto decorre que, de um modo apenas aparentemente paradoxal, a política monetária contribuiu para manter baixa a inflação brasileira, mas à custa de igualmente baixas taxas de investimento produtivo. Do outro lado dos mercados, porém, as alocações de recursos não consumidos (poupança das empresas e das famílias) em ativos financeiros atingiam cifras enormes e inimagináveis no período pré-liberalização. Em 2006, por exemplo, o rendimento financeiro acumulado com a detenção desses ativos representava 57% da renda disponível bruta do Brasil. Os fluxos de juros recebidos e pagos pelo setor financeiro nacional atingiram, no período 1993-2006, as médias, respectivamente, de 29,7% e de 22,3%. Portanto, com taxas reais de juros extremamente elevadas pelos padrões internacionais, evidentemente a quase totalidade dessa poupança manteve-se (e ainda mantém-se) retida na circulação bancária e financeira. Isto significa que na economia brasileira não há propriamente problema de escassez de recursos para investimento produtivo, mas sim um problema clássico de composição de poupança, já que parte significativa da mesma está sendo “esterilizada” por aplicações de curto prazo desconectadas das atividades reais.
Mas, apesar das contradições que caracterizam essa estratégia que privilegia a acumulação rentista, um novo regime de crescimento pôde emergir no início de 2004, graças à conjunção de determinadas condições estruturais e conjunturais favoráveis: a) forte demanda internacional por commodities, desencadeada, principalmente, pela expansão da Ásia; b) redução das taxas básicas de juros Selic, a partir de 2005; c) os elevados ganhos de produtividade da indústria de transformação e os retornos crescentes de escala dinâmicos no segmento exportador deste setor, graças às novas bases técnicas produtivas; d) a existência do BNDES como agente promotor dos financiamentos de longo prazo; e) fortalecimento do mercado interno através da recuperação do poder aquisitivo do salário mínimo, dos salários em geral e dos programas de transferência de renda; e f) os efeitos contraditórios da apreciação cambial, que promove tanto a importação de bens de consumo quanto a de bens de capital de última geração, necessários à atualização das plantas industriais. Em outros termos, enquanto as taxas de juros elevavam sobremaneira o custo de uso do estoque de capital fixo produtivo do país, o câmbio apreciado, coeteris paribus todos os outros efeitos perversos, podia atuar em sentido contrário.
Desta vez, o regime de crescimento econômico beneficia-se de uma maior taxa de acumulação de capital fixo produtivo, o que implica crescimento do PIB potencial também a taxas mais altas. Além disso, como destacam Bansak, Morin e Starr, em um estudo de 2004, as mudanças nas relações entre tecnologia e o nível de utilização da capacidade instalada podem implicar mudanças nas relações entre este último e a inflação. Para um dado nível de utilização da capacidade, o grau de pressão inflacionária pode então ser menor do que o observado no passado. O ponto central é que, ao tornarem as estruturas de oferta mais flexíveis, as novas tecnologias permitem respostas mais rápidas às pressões de demanda, sem necessariamente suscitar ou realimentar uma eventual espiral salários-preços. Neste contexto, as considerações sobre possíveis limites de capacidade com base apenas no Nuci podem conduzir a um excessivo conservadorismo na gestão monetária. Vale lembrar que o custo unitário do trabalho na indústria (definido como o diferencial entre os aumentos reais de salário e os ganhos de produtividade) está em queda há mais de dois anos. As pressões advindas dos preços dos serviços e dos produtos agropecuários podem ser também atenuadas, visto que a indústria continua sendo, em qualquer economia capitalista moderna, a principal fornecedora dos insumos fundamentais para esses setores.
Mas o atual regime de crescimento não tem apenas virtudes. Tem também seus próprios handicaps, pois ele é portador das grandes contradições veiculadas por uma aplicação deliberada e institucionalizada da hipótese de neutralidade da moeda e por uma apreensão da inflação que, não importa qual origem, é sempre assimilada a uma inflação de demanda. Como conseqüência direta, a acumulação de capital fixo produtivo (e conseqüentemente o produto potencial) expande-se quando as expectativas do mercado financeiro são otimistas. Quando não o são, as expectativas de investimento dos outros setores são contaminadas pelo “fantasma” da alta inflação, pelos riscos de depreciação cambial ou por outros atributos derivados de avaliações subjetivas dos detentores de capital e dos gestores de carteira. No contexto da presente crise americana, essas contradições tendem a se agravar, revelando os pontos fracos do atual regime de crescimento subordinado à acumulação patrimonial e às finanças liberalizadas. Um dado fundamental refere-se à tendência de depreciação da taxa de câmbio, pois não é prudente apostar nas vantagens auto-equilibrantes do regime flutuante postulando-se que este sempre a trará de volta ao nível de normalidade para os negócios. Para garantir a continuidade dos investimentos produtivos, deve-se assegurar um nível mínimo de previsibilidade do câmbio e a sustentabilidade da demanda efetiva. Como mecanismo de defesa contra a “endogeneização” definitiva da crise americana pela economia nacional, o governo deveria promover mudanças institucionais que permitissem reduções economicamente significativas e duráveis das taxas de juros e da carga tributária. Como nos EUA, também aqui o Estado será requisitado para cumprir, de forma ativa, seu papel de socializador dos custos da estabilidade financeira e macroeconômica, bem como dos prejuízos implícitos e explícitos da desregulamentação neoliberal que lastreou nossa forma específica de adesão à globalização. Uma possível saída poderá ser pelo caminho do mercado interno, com o resgate do papel determinante da indústria no desenvolvimento econômico das nações. Foi assim também na saída da grande crise dos anos 30.
Miguel Bruno é coordenador do Grupo de Análise e Projeções da Diretoria de macroeconomia do Ipea e professor

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